terça-feira, 18 de março de 2014

Fica em Guaíba a primeira casa de matriz africana do Rio Grande do Sul a obter o reconhecimento como Ponto de Cultura.

Data:18/mar/2014, 8h13min

Pontos de Cultura atendem a um direito básico do cidadão, como a saúde e a escola

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A tribo Oi Nóis Aqui Traveiz é  um dos grupos que integram os Pontos de Cultura e são beneficiados pelo governo do Estado | Foto: Pedro Isaías Lucas

A tribo Oi Nóis Aqui Traveiz é um dos grupos que integram os Pontos de Cultura e são beneficiados pelo governo do Estado | Foto: Pedro Isaías Lucas

Adélia Porto Silva

Eles têm poucos recursos, pouca visibilidade e quase nenhum apoio, mas desempenham um trabalho persistente, importante e corajoso. São grupos de cidadãos que militam em atividades culturais como música, dança, teatro, mas também em ações de educação ou de economia solidária. Compõem uma rede informal de rica diversidade cultural e são fortemente vinculados às comunidades a que pertencem. Desde 2012, esses grupos culturais estão podendo receber apoio financeiro e acompanhamento técnico por parte do governo estadual, em convênio com o governo federal, através do Programa Rede RS de Pontos de Cultura.

Na segunda semana de fevereiro, por exemplo, 43 representantes de grupos participaram na Casa de Cultura Mario Quintana de um curso de formação em gestão cultural, promovido pela Secretaria de Cultura. O curso, que tem um módulo presencial de três dias e outro à distância, com duração de dois meses, trata de temas como economia da cultura, planejamento e gestão cultural, prestação de contas e aspectos jurídicos. O objetivo, diz o diretor de Cidadania e Diversidade Cultural, da Secretaria de Cultura, João Pontes, é ajudar a instrumentalizar os grupos para o gerenciamento, geração de recursos, busca de novos caminhos e oportunidades. “É a sociedade que produz cultura”, diz Pontes. “O Estado oferece apoio”.

Na segunda semana de fevereiro,  43 representantes de grupos participaram na Casa de Cultura Mario Quintana de um curso de formação em gestão cultural | Foto: Sedac / Divulgação

Na segunda semana de fevereiro, 43 representantes de grupos participaram na Casa de Cultura Mario Quintana de um curso de formação em gestão cultural | Foto: Sedac / Divulgação

O programa Pontos de Cultura nasceu como política de base do Cultura Viva, do Ministério da Cultura, em 2004, na gestão de Gilberto Gil, para reconhecer, apoiar e articular projetos culturais já existentes nas comunidades. Alguns municípios gaúchos chegaram a fazer convênios isoladamente com o governo federal, dentro do programa – cerca de 40. Mas em 2012, o governo do Estado assinou com o MinC um convênio pelo qual ambas as esferas passam a atuar em conjunto, oferecendo fomento financeiro e apoio aos grupos, selecionados em editais. O governo federal participa com 80% dos recursos e o Estado, com 20%, num total de 18 milhões para 160 grupos selecionados. Projetos de municípios com até 10 mil habitantes recebem 60 mil reais em parcelas durante três anos. Os de cidades com mais de 10 mil habitantes recebem 180 mil reais por igual período de tempo. Os recursos se destinam em parte à aquisição de equipamentos e o restante, ao custeio. Um primeiro edital selecionou 82 grupos culturais em todo o RS. Outro edital, em fevereiro passado, previu a seleção de 78 novos grupos. Ao ter seu projeto de trabalho escolhido, o grupo é reconhecido pelo programa como Ponto Cultural, um reconhecimento que funciona como qualificação. O Rio Grande do Sul foi um dos últimos estados, junto com o Paraná, a aderir ao programa federal.

Desenvolvimento e cidadania

O programa deixa de considerar a cultura como bem periférico para as pessoas e passa a tratá-la como parte integrante da vida da comunidade. “A cultura está na pauta do desenvolvimento do Estado”, argumenta João Pontes, da Sedac. “A ideia é que a cultura gera renda, emprega pessoas, movimenta a economia de diferentes formas e contribui para a inclusão social”. Dados de pesquisa mostram que 7% da economia brasileira são vinculados à cultura, o que acompanha a média mundial.

João Pontes: “A cultura está na pauta do desenvolvimento do Estado” | Foto: Divulgação

João Pontes: “A cultura está na pauta do desenvolvimento do Estado” | Foto: Divulgação

Os grupos que estão tendo sua importância reconhecida são, diz João Pontes, “historicamente excluídos de tudo – das políticas públicas, do financiamento e dos meios de comunicação privados”. A grande indústria cultural os relega a uma condição de invisibilidade. A nova visão sobre a questão pretende compreender os direitos culturais como prevê a Constituição: bens e serviços culturais são direitos sociais básicos. “Os Pontos de Cultura dentro dos sistemas estadual e federal cumprem o mesmo papel que o posto de saúde e a escola”, diz Pontes.

Para o coordenador do projeto na Secretaria da Cultura, Ricardo Oliveira, “o Estado não tem a capacidade nem a atribuição de fazer cultura. Quem faz cultura são o cidadão e as comunidades. Cabe ao Estado a ação política para estimular a cidadania cultural”. Oliveira considera que o saldo mais importante dessa política é a articulação em rede e a possibilidade dos grupos se encontrarem, trocarem informações e experiências, verem a si mesmos, ganhando autonomia e reconhecimento. A distribuição dos Pontos de Cultura leva em conta a divisão territorial: cada uma das nove regiões funcionais do Estado tem um Ponto de Cultura. Existe também a preocupação de reconhecer como Ponto grupos estabelecidos nos Territórios da Paz, onde o governo procura atuar na área de segurança melhorando os serviços públicos e a qualidade de vida da população.

A noção de cultura merece um tratamento específico. Ela não se limita às manifestações artísticas. “Hoje se avança na construção de uma base teórica e conceitual da cultura”, diz Ricardo Oliveira. Na conceituação ampliada, a cultura perpassa questões de saúde, de economia solidária ou movimentos sociais e campesinos. Ou, segundo o próprio Gilberto Gil, “todo trabalho humano é para a cultura e pela cultura. A senhora que vai à missa, a outra que vai ao terreiro de candomblé, outro que vai ao futebol, outro que vai namorar, tudo isso é cultura”. A diversidade está representada nos projetos selecionados, que tanto podem ser grupos de tradição afro, quilombolas, indígenas, de economia popular solidária, meio ambiente, agricultura familiar, cultura digital, educação, música, dança, teatro. A exigência é que tenham o reconhecimento da comunidade.

Ilê Axé Cultural: em Guaíba, o resgate da tradição afro

Fica em Guaíba a primeira casa de matriz africana do Rio Grande do Sul a obter o reconhecimento como Ponto de Cultura. O convênio que cria o Ponto de Cultura Ilê Axé Cultural foi assinado recentemente e a responsável pela casa, Carmem Lucia de Oliveira – Mãe Carmem de Oxalá, comemora: “Se chegamos até aqui sem recursos, a partir de agora nosso trabalho vai aparecer mais ainda”. A casa existe desde 1943 e tem uma longa tradição de serviço e de agregação social na comunidade do Jardim Santa Rita, em Guaíba. Mãe Carmem é sucessora de sua mãe e a casa sempre foi regida pela força feminina, tanto no campo espiritual quanto social. “Em pequena, via minha mãe receber e orientar muitas pessoas, principalmente mulheres”, conta, lembrando a atuação de guia solidária que a mãe desempenhava.

Mãe Carmem: “Nosso trabalho é ajudar a tornar digna a vida das pessoas” | Foto: Sedac / Divulgação

Mãe Carmem: “Nosso trabalho é ajudar a tornar digna a vida das pessoas” | Foto: Sedac / Divulgação

“Nosso trabalho é ajudar a tornar digna a vida das pessoas”, diz. Além de preservar e valorizar a cultura afro, devolvendo identidade e orgulho às pessoas, a casa oferece à comunidade oficinas e atividades práticas de aprendizado e de trabalho. Por iniciativa da Ilê Axè Cultural, foram identificadas e preservadas duas áreas na cidade – a Pedra de Xangô e a Gruta de Oxum, ambas na praia da Alegria – , espaços outrora habitados por negros escravizados. “Nossas atividades culturais desembocam nesses espaços”, diz ela. A casa dispõe de um telecentro aberto à comunidade. Com 11 máquinas, não dá para atender todos ao mesmo tempo, por isso existe um horário de uso. Quando o jovem deixa o computador para ceder o espaço a outro, vai para uma “roda de conversa”, que tem a coordenação de alguém do grupo, onde tem oportunidade de falar sobre temas de sua realidade e onde a questão da identidade é um dos assuntos que mais aparecem.

O projeto selecionado pelo programa é composto por três eixos: culturas populares – oficinas de capoeira, ritmos e danças; grupos étnicos culturais – resgate cultural, popularização das festas, exposições; e incubadora cultural, onde os jovens têm acesso a equipamentos como instrumentos musicais, máquinas fotográficas, filmadoras e equipamentos de som, oferecendo a possibilidade de projetarem o futuro. Uma das primeiras aquisições que a casa fará com os recursos repassados pelo projeto será aparelhos de ar condicionado que vão melhorar o conforto dos usuários no telecentro.

Com os recursos da Rede RS Pontos de Cultura, a tribo Oi Nóis Aqui Traveiz vai investir nas oficinas que oferece em alguns bairros de Porto Alegre | Foto: Pedro Isaías Lucas

Com os recursos da Rede RS Pontos de Cultura, a tribo Oi Nóis Aqui Traveiz vai investir nas oficinas que oferece em alguns bairros de Porto Alegre | Foto: Pedro Isaías Lucas

A história heroica do Ói Nóis Aqui Traveiz

Com uma história heroica de 35 anos, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz é um dos projetos reconhecidos pelo Rede RS Pontos de Cultura. Obter patrocínios não tem sido frequente na vida deste grupo que optou por subverter a estética e a experimentação teatral com base no teatro revolucionário e no pensamento do francês Antonin Artaud, ligado à arte surrealista e ao movimento anarquista. “O grupo tem desenvolvido ao longo do tempo diversas formas de sustentabilidade”, diz Marta Haas, que trabalha com a tribo desde 99, primeiro como aluna de uma das oficinas e agora dando aulas de iniciação teatral. Só depois de 28 anos de atuação, o grupo obteve um patrocínio – da Petrobras – que se manteve até o final do ano passado, custeando muitas das despesas. As pessoas mantêm atividades paralelas e não dependem financeiramente do trabalho que fazem no grupo. “Os recursos que virão agora vão garantir a continuidade de algumas oficinas em bairros”, diz Marta. Possibilitarão também qualificar o equipamento audiovisual do grupo. Ela acredita que, por ter sido reconhecido como Ponto de Cultura, Ói Nóis Aqui Traveiz terá mais facilidade em atuar em rede com outros grupos e com outros Pontos de Cultura.

O grupo teve como sede durante muitos anos a Terreira da Tribo, em mais de um endereço, na Cidade Baixa. Desde 2000, ocupa um espaço no bairro Navegante, onde funciona como Escola de Teatro Popular. Toda a organização do grupo é coletiva, desde a criação e montagem dos espetáculos à manutenção do espaço. As oficinas de formação de atores, uma das vertentes do trabalho do grupo, são gratuitas, em seis bairros da cidade.

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